segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Mariage Frères

segunda-feira, 3 de agosto de 2009
Classificação: 12+
Autor: Branca
Obs: Esse texto foi realizado dentro da oficina de escrita.
A idéia era todos escreverem dois personagens num papel, e depois
trocarmos um com o outro para escrever uma história com
dois personagens completamente diferentes.
Nessa história, um era chocolatier - e o outro era jogador de futebol.
Aproveite, e eu aconselho não ler enquanto estiver comendo chocolate.
Personagens:
Jacques Pierces:
Feito por: Eduarda
-26 anos de idade
-cabelo loiro e longo, olhos castanhos. É um tanto baixinho e não é dotado de uma beleza extraordinária
-Toca piano
-trabalhava como chocolatier em sua própria fábrica. Porém enlouqueceu e virou um psicopata – e ele transformava suas vítimas em chocolate
-adora ler e adora música
-era casado, porém matou sua esposa
-século XIX, origem: Bordeaux, França
-é bem humorado e adora fazer piadas, entretanto, seu aspecto é totalmente sombrio e assustador
-de tanto sofrer no passado, a dor já virou sua amiga
-gosta de xadrez
-anda sempre de luvas e cartola

Kevin:
Feito por: Jéssica
-28 anos
-loiro
-jogador de futebol
-sincero
-alto
-impaciente
-não se preocupa com os problemas do mundo externo
-fuma
-filho adotivo
-insatisfeito com a sua vida
-influenciável
-bricalhão





Meu único indício era um recorte de jornal sobre gastronomia francesa. Peguei uma barca de Londres até Paris e de lá uma carruagem até Besançon, onde um caixeiro viajante me levou até a pequena cidade que eu buscava. No endereço indicado, em vez da chocolataria, encontrei uma boulangerie, que, ao contrário das padarias inglesas, tinha pães excelentes e um padeiro antipaticíssimo. Aparentemente, o homem que eu procurava estava preso, e seria executado no sábado seguinte. Gastei todo o meu francês tentando explicar para o prefeito que um assunto de família urgente me obrigava ver o prisioneiro, mas consegui permissão para visitá-lo.

-Monsieur Pierces?

- O que que é agora?

-Tem um senhor que deseja vê-lo.

-Ver-me? Pois então que entre.

O carcereiro abriu a porta da cela, revelando uma sala bem mais habitável do que eu esperava. No canto esquerdo, abaixo da janela, excessivamente engradada, estava uma cama, uma mesa para estudo e, sentado em uma bela poltrona de veludo, um homem muito magro, não muito alto, com cabelos loiros que precisavam desesperadamente ser lavados e cortados, mas, fora isso, ele estava vestido como um perfeito gentleman.

Levantou os olhos de seu livro:

-Não o conheço. Pode mandá-lo embora.

E voltou a sua leitura. O carcereiro já ia impedir a minha entrada, mas eu insisti:

-Monsieur Jacques, tenho um assunto de máxima importância para tratar com o senhor.

Desta vez ele levantou os olhos do livro parecendo interessado.

-Ah, mas é um Britishman. Você não tinha me dito isso. Entre, entre, tenho justamente algumas perguntas a fazer sobre vocabulário. Byron pode ser uma tanto, hm, tricky, como vocês dizem.

O carcereiro me olhou com certa desconfiança, mas me deixou entrar.

-Sente-se, sente-se, disse ele, puxando uma cadeira de sua mesa de estudo. Não entendo como os demais prisioneiros reclamam da solidão. Esses carcereiros me interrompem o tempo todo com os assuntos mais triviais. Imagine, eu estava ensaiando uma peça de Bach e eles me obrigaram a parar para me avisar que o presidente Faure estava disposto a me absolver se eu me internasse de novo num sanatório. Excuse my french, como vocês diriam, mas eu os mandei à merda, você sabe como é difícil tocar Bach sem partitura. Mas desculpe-me a indelicadeza, aceita um chá? Tenho Erva-Doce, Jasmim e Canela, ou o senhor prefere chá preto? Talvez com uma lágrima de leite, como os seus compatriotas?

-Não, obrigado. Talvez mais tarde.

-Tem certeza? É da melhor casa de chás de Paris, Mariage Frères, que fica perto do Jardin des Plantes.

-Obrigado. Mas diga-me, o senhos nem ao menos considerou a proposta?

-Do sanatório? Claro que não. Bem, eu perguntei se lá eu teria diretio a um piano, já que aqui só me deixaram trazer o meu violino. Me disseram que não, então por que eu iria querer ir pra lá? Sim, eles me manteriam vivo, eu sei, mas todos nós vamos morrer um dia, não é mesmo? Além do mais, acho que eu não me adaptaria ao século XX. Mas perdoe-me, estou falando sem parar e não dei tempo para que o senhor se apresentasse.

-Também foi indelicadeza minha não me apresentar antes de entrar. Meu nome é Kevin,

-Kevin? Monsieur Kevin...?

-Van Wyngarden. Kevin van Wyngarden. O senhor se importa se eu fumar?

-Claro que não, não se preocupe comigo. O senhor é de origem alemã? Austríaca, talvez?

-Alemã. Quer dizer, meus pais são. A família Van Wyngarden tinha um condado perto de Stuttgart.

-O senhor por acaso não seria parente de Johan Van Wyngarden?

-Sou. É meu pai.

-Pois saibe que eu sou um grande admirador de seus poemas. Só pude estuda-lo depois de mais velho, porque não se podia falar sobre ele na presença de meus pais. Certa vez, eu era muito jovem ainda, trouxe para casa um volume de poemas de Sir Van Wyngarden. Meu pai teve um acesso de raiva, e minha mãe uma crise de choro. Fui proibido de prosseguir e minha leitura e de continuar com as aulas de alemão. Na verdade, só fui descobrir que eles se conheciam pessoalmente anos depois da morte de meu pai, quando encontrei suas memórias.

-Não sabia que seu pai estava morto. Tinha esperança de conseguir seu endereço. Sua mãe...

-Morreu também, antes dele, até. Não sobrou nenhum Pierces em Bordeaux. E sábado à tarde não sobrará mais nenhum no mundo. Sou filho único, e meu pai só teve irmãs. Mas agora me ocorre uma coisa, uma vez vi uma foto de seu pai. O senhor não se parece em nada com ele. Deve se parecer com sua mãe, não?

-Tenho minhas razões para pensar que sou adotado..

-Oh.

Ele ficou silencioso alguns instantes.

-Monsieur Van Wyngarden, sinto muito ter causado tanto transtorno e ter feito o senhor cruzar o canal da Mancha, mas eu não sou o seu verdadeiro pai, je suis desolé.

Sorri. Para um francês até que Monsieur Pierces tinha senso de humor.

-Quantos anos o senhor tem?

-Vinte e oito. Vinte e nove em outubro.

-Vejamos. Bom, se meus cálculos estiverem certos, o senhor nasceu qunado eu tinha menos dois anos. Não adiantea insistir, não vou incluir o senhor no meu testamento. Quer jogar xadrez?

Não queria, não quis admitir que não sabia jogar.

- Monsieur Pierces, não quero parecer intrometido, mas permita-me perguntar, por que o senhor foi condenado?

-Pensei que já tivessem contado para o senhor. Só se fala nisso nessa cidadezinha de merda. Desde que aquele padrezinho parisiense filho do carpinteiro tentou matar a amante na igreja, não aconteceu mais nada nessa cidade. E olha que isso tem mais de sessenta anos!

-Mas, Monsieur Pierces, conte-me.

-Claro, claro. É que, como foi que eles disseram mesmo? Cometi um atentado contra a moral e a saúde pública. E matei algumas pessoas, mas ninguém de muita importância. Ah, sim, minha esposa. Mas bem, quando descobriram, me mandaram para um sanatório: Maison Sainte-Guenièvre, perto de Théoul-sur-Mer, no Sul, dirigida pelo Professeur Plume. Aí então a família da minha mulher conseguiu que eu fosse julgado novamente e eu vim pra cá. Mas eu falo demais, conte-me sobre a sua vida.

-Não é muito interessante. Cresci em Surrey, fiz faculdade em Londres, mas agora sou atleta. Jogo futebol num time chamado Arsenal.

-Futebol? Que exótico. É uma profissão do futuro. Eu sou um homem do século XIX. Já era predestinado a morrer em 1899. Só esperava que fosse de uma maneira mais suave do que com uma guilhotina. E o senhor parece um homem feito para o século XX. Parece também um tanto insatisfeito agora, mas as coisas devem melhorar para você na virada do século.

- O senhor diria que sofro desse tal de mal du siécle?

-Diria que todos nós sofremos. E quando não é do nosso, é de outros. E o tempo, bem , o tempo nunca foi muito amigo de ninguém, não é mesmo?

-Monsieur Pierces, odeio ter que ser mais intrometido, mas preciso perguntar, por que o senhor matou essas pessoas?

Ele ficou silencioso alguns instantes, mas respondeu sem nenhuma afetação, do mesmo jeito rápido de antes:

-Bem, primeiro eu matei só para saber como era. Sempre me disseram que quem vê a morte de perto dá mais valor à vida. Então eu quis ver a morte de muito perto, olhar em seus olhos, tocá-la. Eu queria abraçá-la, dançar com ela. Como sou covarde demais para tentar me matar, resolvi usar olhos de outro. Me encontrei com um cadáver que precisava ser escondido. Eu ia queimá-lo no forno da fábrica, quando pensei que poderia derreter o corpo junto com o chocolate. Era só triturá-lo até virar uma pasta e misturar bem. Deu trabalho, mas depois que tirei os ossos ficou bem mais fácil. No dia seguinte, um domingo, dei os ossos para uns cachorros e fui distribuir chocolate na saída da igreja. Acabaram em meia hora. No dia seguinte, as crianças da cidade vieram comprar outros, mas reclamaram que o gosto não era o mesmo. Então eu me vi obrigado a matar mais algumas pessoas para assegurar o meu estoque de matéria-prima. Meu único erro foi matar a minha esposa. Minto, na verdade, meu único erro foi não ter pensado num álibi.

-Mas o senhor viu a morte de perto, isso não o fez valorizar a vida? Se não a das suas vítimas, pelo menos a sua própria?

-Mas é claro que não. Morte, só se vê a própria. Só vou entender a vida quando vir o palanque da guilhotina. Ou quando a lâmina cair, não sei. Mas talvez eu descubra que não vale a pena mesmo.

-E o chocolate, era realmente melhor?

-Não sei. Não como carne, não provei. Agora, se o senhor me dá licença, gostaria de terminar a minha leitura. O senhor me entende, não gosto de deixar coisas inacabadas e não tenho todo o tempo do mundo. Oh, mas como sou rude, perdoe-me, o senhor ainda não me disse o que o trouxe aqui.

-Minha mãe estava muito doente quando deixei a Inglaterra, talvez já esteja morte. Ela me mandou procurar o senhor, só não me disse a razão. Disse que você saberia.

-Eu?

-Bom, ela me mandou procurar por Monsieur Jacques Pierces, mas acho que ela queria dizer o seu pai. Eu não saia como encontrá-lo, e quando vi a resenha sobre os Chocolats Pierces no jornal, não me ocorreu que pudesse ser um homônimo. Mas também fui rude, o senhor não queria me perguntar o significado de uma palavra? Me parece que foi para isso que me convidou para entrar;

-Oh não, não. Foi só uma desculpa. A verdade é que eu simpatizei com o senhor. Imagine, domino melhor a língua inglesa que muitos formandos de Oxford!

-Se o senhor não se incomodar, eu tenho uma pergunta. Mariage Frères, isso seria algo como “irmãos casados”?

-Não, não, que idéia! É “Irmãos Mariage”, “Irmãos Casamento”. Não sei se concorda comigo, mas eu acho um nome belíssimo, a idéia de irmãos trabalhando juntos já é bonita em si, e o “casamento” no sobrenome só faz reforçar a união entre eles.

-Realmente, é um belo nome.

Estava levantando da cadeira quando ele me interrompeu.

-Espere um minuto, sim?

Pegou um dos livros que estava em sua mesa, arrancou algumas páginas escolhidas e me entregou o volume desfalcado.

-São as memórias de Jacques Arthur Léopold Pierces, meu pai. Tomei a liberdade de arrancar algumas páginas, gostaria de tê-las comigo no sábado. Engraçado. Reparei agora que o senhor tem alguns traços que me lembram ele. Pena que não tenho nenhuma foto para mostrá-lo.

-O senhor tem certeza? Depois da desavença acho que a última coisa que seu pai iria querer é que um Van Wyngarden ficasse com algo dele.

-Justamente. Prazer um conhece-lo, Monsieur Kevin. Escreva suas memórias de homem moderno, e não se esqueça de mim, não esqueça que um dia conheceu um homem que perdeu a cabeça. Um belo, um maravilhoso, um fantástico, um estupendo século XX para o senhor. Agora, se me dá licença, eu tenho um Sainte-Beuve para acabar.



Não voltei mais à Inglaterra.

0 Eu acho que...:

Postar um comentário

Então, o que que você acha?
Eu acho que...