Autor: Branca
Classificação: L
-”Ah, dane-se. Os velhos falam sozinhos e eu sou velho. E eu nem falo muito com as pessoas que eu cuido, não quero que me chamem de velho maluco, sabe? E, de qualquer jeito, o senhor morreu, não é como se você fosse se importar muito com isso. Na verdade, desde que eu comecei a trabalhar aqui acho que essa é a primeira vez que eu falo com um cadáver. Não, não precisa se preocupar, não é a primeira vez que ninguém vem num velório. Mas das outras vezes que eu estava sozinho, não estava chovendo, aí eu ficava do lado de fora, pegando um sol. Faz bem pros ossos. Mas hoje eu não posso me arriscar a ficar na chuva e pegar uma pneumonia. Com a minha idade não se brinca com essas coisas, não é? Até porque de tanto conversar com a moça da funerária eu acho que eu estou virando meio hipocondríaco. Eles sempre têm umas histórias horríveis sobre os mortos. Antigamente as pessoas morriam porque ficavam velhas e pronto. Hoje não, é assassinato, é doença esquisita, é suicídio... O senhor não ia acreditar na quantidade de suicidas que aparecem aqui. A família esconde, sabe como é, pra poderem enterrar o dito cujo direito. Mas a gente sempre sabe. O velório fica com um clima diferente. Eu geralmente aposto com o Carlinhos, pra ver quem adivinha do quê o defunto morreu. Você tem cara de câncer. Ou Alzheimer. Eu sempre acerto. Acho que é porque eu trabalho aqui já tem... deixe-me ver, eu vou fazer setenta e dois em abril, então... vinte... vinte e oito anos que eu trabalho aqui. Antes eu era policial, mas aí quando eu vi que abriu uma vaga pra segurança da capelinha eu não pensei duas vezes. Era muito difícil pra minha esposa, que deus a tenha, me ver trabalhando na polícia, era muito arriscado. Aqui é mais calmo. Eu trabalho de dia, e de noite o Carlinhos me substitui. Morro de medo de ficar aqui de noite, no escuro. Não que eu acredite em fantasmas. Mas se eu encontro uma alma penada eu tenho um enfarto. Infarto. Será que foi assim com você também? E se eu enfartar quem vai cuidar do cachorro? Ele está tão velho que nem os meus netos, que são umas pestes, você precisa ver, conseguem fazer ele brincar. E os meus filhos sempre reclamam que não dá pra cuidar de um animal num apartamento. Só a minha mulher que nunca reclamava dele. Olha, seis horas, já. O Carlinhos já deve estar chegando. Tchau. Mas que coisa de louco, se despedir de um morto! Estou virando um velho maluco mesmo. Mas, ah, eu falo com o meu cachorro, ele também não me responde e ninguém diz que eu sou maluco por causa disso. E às vezes faz bem ouvir o som da sua própria voz. Principalmente quando você passa tanto tempo sozinho, que nem eu. Pensando bem, você deve estar se sentindo um pouco sozinho também. Mas eu aposto que amanhã, no seu enterro vai tem um bando de gente. Quem sabe eu não venho também, hein? Vou tentar até trazer umas flores pra você. Tem umas flores brancas tão bonitas na floricultura da minha rua, mas eu nunca consigo lembrar o nome. Ah, quer saber? Acho que vou esperar aqui até o Carlinhos chegar, pra você não ficar sozinho. Você não se importa se eu dormir um pouquinho, não? Velho tem muita insônia, então tem que aproveitar quando o sono aparece. Além do quê, eu posso pegar o guarda-chuva do Carlinhos emprestado quando ele chegar, eu não quero me molhar e essa chuva não tem cara de que vai parar tão cedo. Bom, boa noite então.
- Boa noite.”
- Boa noite.”